quarta-feira, 25 de maio de 2011

CANTOS DA MONTANHA

Este livro virtual é dedicado a você, Guy.


RAILWAY



Ao longo da estrada, a longa jornada e, ao lado, a inerte e silente testemunha – extensa serpente metálica. Rubra e tesa, ainda firme, presa em suas bitolas, segue em frente, numa longa reta.

Um dia viu sobre si deslizar belos vagões, gente elegante, ricos produtos. Se pesados, ao menos nobres. Agora, só lhe restaram o sol, a poeira e a chuva, além da ferrugem, fiel enviada do tempo.

Alegrias... algumas. Engraçado quando lhe apontavam da estrada, alguém em sua jornada, e que, de súbito, enxergava nela um traço do passado. Também divertia-se em alguns trechos sinuosos – sentia cócegas. E as pequenas pontes e passagens de pedra ou tijolos, namoricos passageiros, suspiros, carícias e beijos, flerte sem futuro, pois trilhos, em geral, entregam-se, mas não se apegam, muito menos a amores ermos.
Soa um apito. É a memória da serpente metálica, tão saudosa e intensa que audível. Talvez lembre. Talvez, ainda, sonhe.


A DUPLA CIDADE



Uma praça pequena, estreita e triangular, com poucas árvores, bancos descascados, rodeada por casas pálidas. As formas parecem não ter encontrado ali um repouso. Seria mesmo aquele o lugar se lugar algum ali há. Um passo tímido rumo ao incerto. Já se foi a caravana. Agora, é sem volta.

Subir, subir, subir. É aqui? Não, mais adiante, diziam alguns, mas onde? Traços de fé – uma igreja escondida atrás de vigas. Lembra a angústia dos tempos em que as parteiras ardiam em praça pública sob o infeliz título de bruxas.
Cachorros e porcos fuçam o lixo onipresente. São casacas, ossos, caroços, folhas, trapos e outros restos. Subir, subir mais. As pilhas de ordura rareiam. Passos para cima, não para o alto, revelam aos poucos arranjos e cores em ajuste – as formas enfim se enquadram.

Já é outra, a cidade! Outra cidade? Pois outra praça, larga, bancos de madeira trabalhada, piso de sentamentos exatos, árvores e mais árvores bem podadas. Ali, outra igreja, imponente, com torres a desafiar as outras naturais, atrás, mais ao longe. Ali, outras moradas, dignas de assim serem chamadas, com ares de habitação, não meros prédios, construtos aparentes a evocar semelhança de casa.

Pobre mesma cidade largada abaixo. Apesar da pena, não merece suspiro. Deve ser esquecida. Subir, subir e subir. E então, parar. À cidade acima, a mesma cidade, uma outra pena – a do poeta que lá encontrou paragem.



O TEMPLO



Não é um rochedo, apesar de ser rocha.
É um mosteiro, muito antigo, que já não reverbera preces – apenas silêncio.
Lá não há mais monges – apenas orquídeas e musgo.
Um velho prédio – apenas isso.



O ABRIGO



Longa jornada. Suor e peso às costas. Acima do morro, o palácio do conforto, com suas paredes de vidro, piso de madeira e, ah!, uma lareira.
Diz-se que uma construção sem habitantes já é uma ruína antes mesmo das paredes a baixo. Isso intuindo os serviçais, na ausência de reis e rainhas, de bom grado abrem as portas a dois peregrinos, conduzindo-os de pronto a seus aposentos. Seriam vida naquele vazio, ao menos.

O palácio do conforto tem quartos de móveis finos e uma decoração trompe-d’oeil – a natureza parece tê-lo invadido. Além das largas portas de mógano, na sacada, avista-se adiante a floresta, que aproxima-se através do jardim, sobre ao quarto por trepadeiras e instala-se aos pés do peregrino em plantas e flores dispostas em vasos multiformes. O verde onipresente exala um contínuo perfume doce – sua linguagem. Pelo olfato diz ao cérebro: “Não me deixes.”

Os pés em brasa livram-se dos sapatos e ganham uma massagem imediata do frio. Um banho quente. Prazer. Então, cama; o corpo coberto por uma manta grossa. Cantam pássaros lá fora. E, não, não é sonho.


UMA NOITE DE TEMPESTADE



O último raio de luz corre entre as folhas das árvores e, após ensaiar resistência, some. Clamor na mata. Os animais dissoam numa ópera de timbres variados e notas agudas, ensurdecedoras, elevando um dos pássaros sua ária de forma tão estridente e contínua que o próprio céu, em vias de repouso, enerva-se. Cabe às nuvens, exército da abóbada, fazer com que as criaturas da terra reconheçam sua pequenez e se calem. Um raio desce à terra e, daí a alguns segundos, um estrondo semelhante à cavalgada da morte percorre a montanha. Se ainda há bichos a protestar o destronamento do sol, logo fogem mudos para suas tocas, pois um outro, mais outro e tantos outros raios cortam o alto crepuscular, seguidos de ira em dó menor. Invisíveis Valkírias cavalgam sobre as copas das árvores, anunciando chegada da rainha noite e sua mais recente amante, a tempestade.

As duas descem à terra ao mesmo tempo, cúmplices, ameaçadoras, abraçadas. Uma ri: “Vendarei os olhos deles, mesmo que abertos.” A outra gargalha: “E eu os açoitarei com lâminas gélidas.” Não demora e o novo reino instaurado dá mostras de tirania. Porta em porta vai a tempestade bater, tendo a noite logo atrás, um cálice de abismo tinto à mão, zombando daqueles que tremem. Ébrias, transam selvagemente e em seu prazer irresponsável fazem lama, transbordam rios, alagam casas, destroem muros, calçamentos, desmoronam barrancos. E quando já se pensa que não sobrará nada, as duas, ainda em farra, despedem-se da montanha, tomando carona na carruagem azul-esperança da alvorada.



DEPOIS DA CHUVA




Da chuva, apenas a lembrança, visível, deixada em vestígios.

Desce a encosta um córrego onde ontem lá não havia, cristal fluido, tímido e não menos arredio. As folhas pesam e não ousam olhar para cima, põem-se cabreiras, dobradas; o céu, na noite passada, não lhes fora gentil. Se ao menos tivesse findado a tormenta com o sopro quente do sol... Mas, não. A chuva tinha enviado uma vestal para resguardar a melancolia por ela instaurada, uma dedicada serva, uma espessa e espectral névoa que a tudo toma em seu gélido abraço.

Na estrada para o povoado, num trecho mais abaixo, forma-se agora um lago cujas águas amareladas impedem qualquer passo. Os pés só encontram apoio na rama ao lado, um tapete aparentemente firme, no fim revelando-se um charco, com poças escondidas sob a manta verde, as duas, juntas, numa traquina ameaça - ora fundas, ora rasas. Acaba sendo a lama a menor das intempéries – se não firme, ao menos suportável.

Ao longe, nas bordas do descampado, três cavalos brancos, tremendo de frio, sob galhos clementes abrigados. Quase se perdem à vista dentro do quadro esfumaçado. Testemunhas da impiedosa ação da tormenta, foram pelo sofrimento tornados sábios, profetas. Se se protegem sem haver chuva, é porque chuva logo terá vinda certa. Já tombam algumas gotas. Os cavalos aproximam-se uns dos outros. A névoa torna-se ainda mais espessa e os envolve, desenhando sobre suas espáduas contornos semelhantes aos de asas.



O CHAPELEIRO LOUCO




No centro da vila, na parede frontal de uma casa grande e velha, uma escultura bizarra – o busto branco de mulher envolto em galhos e pequenos adornos; obra de artista ou de louco.

“Bom dia”, surpreendeu-nos a voz. Logo às costas, uma figura alta, empolada, de maneiras bambas, com uma taça de vinho à mão. “Do porto”, apressou-se em dizer, ao ver que sua bebida tinha sido o último alvo de nossos olhos.

Como um porta-voz da vila, contou-nos a tragédia, a história da tempestade que, pelo dito, antecedeu a nossa chegada em quatro dias. Tinha ela arrasado tudo – embora tudo ali estivesse! O arauto do infortúnio parecia padecer de uma doença nada rara entre os artistas (e loucos) modernos – o exagero. Bons tempos aqueles em que a arte (ou a loucura), mesmo em excesso, encontrava uma coerência na estética.

“Uma tsunami”, foi seu último devaneio e, vendo que nos desiludia, concluiu: “Voltem à noite, quando tudo estará em ordem. Venham celebrar conosco a reconstrução!”

Mais tarde, é noite e chove. De toda a cidade, a casa da escultura bizarra é a única alagada, com um fluxo assustador de água barrenta cruzando-lhe a área. Suas portas todas estão fechadas. O Chapeleiro Louco deve estar lá dentro, vendo a água passar sob sua cama, a sonhar que rema sobre as águas do Sena.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Leaf in the wind



You’re nothing but a tiny leaf
Traveling in the arms of wind
A dot unbelievably small
Fragile like a futile thought

Signed by uncertainty you are
That’s how you’ve got so far
If you don’t know where to go
At least you can go anywhere